segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Embrutecidos pela trivialidade

Sábado estávamos saindo de casa por volta de 21h, e ao chegar ao acesso da rodovia, percebemos o burburinho, viaturas, gente correndo para visualizar de perto o ocorrido. Como o trânsito estava complicado, já que a faixa estava totalmente interditada (descobri depois que o corpo estava estatelado ocupando toda a faixa), de longe avistei o cadáver, sem detalhes, visto que guardávamos distância considerável até a cena.

Seguimos nosso rumo, que era contrário ao mencionado local. Pois bem, retornávamos por volta de 1h, e a viatura da Polícia Rodoviária ainda estava no local, ainda havia populares na lateral da pista (sim, porque não se pode chamar aquele microscópico local de "acostamento"), e para nossa imensa surpresa quando da aproximação, O CORPO PERMANECIA ESTATELADO, coberto pelo que parecia um lençol branco, rodeado de cones de sinalização. A moto que a vítima conduzia estava logo ao lado, o que sobrou do capacete mais adiante, e alguns metros além, via-se um ferro retorcido. Não visualizei o causador do acidente.

No domingo, voltávamos do almoço em Ubajara quando fomos parados por um policial rodoviário estadual. Eu, claro, perguntei sobre o acidente. Muito displicentemente, ele disse "senhora, foi vítima fatal, imediato". Ok, essa informação eu já tinha. Não estava preparada para o que veio a seguir: disse o policial que o motoqueiro foi colhido por uma S-10, que se evadiu e foi interceptada adiante. Ambos - vítima e condutor/causador - não eram habilitados. Quando falei da minha surpresa com relação ao tempo em que o corpo ficou lá, e também o fato de não haver marcações no chão (o que é comum na capital, em caso de acidentes comuns, imagina com vítima fatal) o policial me disse: - Olha, senhora, aqui não tem rabecão. O corpo tava esperando remoção, e chegou a Hilux, jogaram o corpo em cima e levaram.

***Pausa para reflexão, estarrecida.***

Só posso crer que o sistema embrutece o ser humano. Coisas desse gênero se tornaram tão triviais, que sequer direitos constitucionalmente garantidos, como o respeito para com os mortos, não passam de letra morta (literalmente). É assim, o povo corre para ver o sangue escorrer, fotografa, posta na internet, o corpo fica horas a fio exposto ao escárnio, quando é recolhido o é de qualquer jeito... Não sei, é inconcebível para mim uma coisa dessas. Eu me compadeço ao presenciar algo assim. Penso no indivíduo em si, na família que vai receber a notícia, nos trâmites decorrentes (IML, liberação do corpo, laudo cadavérico, remoção do corpo, velório, missa, enterro/cremação, rescisão de contrato, pensão por morte, etc. etc. etc). Normalmente, fico dias e dias com algum tipo de pensamento ligado ao fato. Até hoje penso na Any, e no que o viúvo tem passado com a precariedade dos sistemas policial/legal: 40 dias, e nada de laudo cadavérico.

Será que no meu rol de afazeres cotidianos eu também fiquei embrutecida, perdi a capacidade de me comover? Taí uma perguntinha para a qual preciso pesquisar uma resposta.

Um comentário:

  1. Alastrou-se - e parece não ter fim a epidemia - no interior deste majestoso estado o desprezo do poder público por sua atividade vital e fundamental de fiscalizar o trânsito. A isso alia-se, por parte do cidadão do interior, o abuso no uso dos veículos sem a devida habilitação e do álcool. Neste "acidente" que você presenciou vítima e algoz não eram habilitados. Não foi um acidente. Foi uma negligência e uma omissão do poder público; assumiu, assim, o risco de ocorrer assassinatos e lesões corporais incapacitantes ou não em via sob sua responsabilidade. Uma vergonha. A isso se soma o desprezo às suas vítimas após consumada a tragédia. Antes o poder público despreza a vida, para em seguida desprezar a morte. Quantas vergonhas devem-se acumular até que a sociedade reaja? Em tempo: há mais um desprezo do poder público, pelo orçamento; não dá a mínima para os rios de dinheiro - do contribuinte - que são gastos com sua irresponsabilidade e descaso. É outra vergonha a nos fazer corar.

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