terça-feira, 18 de março de 2014

Jogando frescobol... rsrs

O texto a seguir, de Rubem Alves, retrata com maestria a realidade dos relacionamentos. Estúpida da criatura que julga as famosas "DR"s como algo ruim... ruim mesmo, nocivo, maléfico e cancerígeno é varrer para debaixo do tapete aquilo que precisa ser externado. 

Só que conversar, quando se trata de relacionamento, pressupõe a existência de maturidade, que por sua vez demanda desenvolvimento mental compatível. Daí porque, via de regra, perduram as relações cujos personagens compreendem a importância vital de falar e ouvir. E isso, vejam só (!), alimenta o amor. 

E você, prefere um relacionamento do tipo "tênis" ou "frescobol"?


Depois de muito meditar sobre o assunto
concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e
há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte
de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo
frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa.

Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo
inteiramente. Dizia ele: “Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um
deveria se fazer a seguinte pergunta ‘Você crê que você seria capaz de
conversar com prazer com esta pessoa, até a sua velhice?’ Tudo o mais no
casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas
construídas sobre a arte de conversar.”


Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos
baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em
separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte,
como no filme O Império dos Sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, 

e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: 
começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. 
O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou
da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita
sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os
carinhos que se fazem com as palavras.
E contrariamente ao que pensam os
amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o
tempo todo: “Eu te amo, eu te amo...” Barthes advertia: “Passada a primeira
confissão, ‘eu te amo’ não quer dizer mais nada”. É na conversa que o nosso
verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez
poética
. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: “Erótica é a alma”.

O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua
derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se
tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do
ponto fraco do seu adversário - e é justamente para aí que ele vai dirigir a
sua cortada - palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é
o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto,
justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário
foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de
outro.

O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e
uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se
a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior
esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro
possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado.
Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro
erra - pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é
como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido,
pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ire vir... E o que errou pede
desculpas, e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância:
começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos...

A bola: são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de
palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá...

Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à
espera do momento certo para a cortada. Camus anotava no seu diário pequenos
fragmentos para os livros que pretendia escrever. Um deles, que se encontra nos
Primeiros Cadernos, é sobre este jogo
de tênis: “Cena: o marido, a mulher, a galeria. O primeiro tem valor e gosta de
brilhar. A segunda guarda silêncio, mas, com pequenas frases secas, destrói
todos os propósitos do caro esposo. Desta forma marca constantemente a sua
superioridade. O outro domina-se, mas sofre uma humilhação e é assim que nasce o
ódio. Exemplo: com um sorriso: ‘Não se faça mais estúpido do que é, meu amigo’.
A galeria torce e sorri pouco à vontade. Ele cora, aproxima-se dela, beija-lhe
a mão suspirando: ‘Tens razão, minha querida.’ A situação está salva e o ódio
vai aumentando.”

Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão... 

O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre
perde.

Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser
preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração
. O bom
ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do
outro voem livres. Bola vai, bola vem - cresce o amor... Ninguém ganha para que
os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para
que o jogo nunca tenha fim...


(Correio Popular, 1991 ou 1992)

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